segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

10 leprosos - 1

"E aconteceu que, indo ele a Jerusalém, passou pelo meio de Samaria e da Galiléia;
E, entrando numa certa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez homens leprosos, os quais pararam de longe;
E levantaram a voz, dizendo: Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós.
E ele, vendo-os, disse-lhes: Ide, e mostrai-vos aos sacerdotes. E aconteceu que, indo eles, ficaram limpos.
E um deles, vendo que estava são, voltou glorificando a Deus em alta voz;
E caiu aos seus pés, com o rosto em terra, dando-lhe graças; e este era samaritano.
E, respondendo Jesus, disse: Não foram dez os limpos? E onde estão os nove?
Não houve quem voltasse para dar glória a Deus senão este estrangeiro?
E disse-lhe: Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou." (Lucas 17:11-19)


Ontem ouvi um sermão explanando sobre o leproso que é curado e retorna para agradecer, e enquanto ouvia, algumas idéias me assaltavam no momento, e irei compartilhar;

Leprosos

A lepra como doença recebe o título de a doença mais antiga do mundo, afetando a humanidade há mais de 4 mil anos. A transmissão é por meio de gotículas de saliva. São graves os sintomas dermatológicos, consistindo no comprometimento das sensações nervosas, diminuindo a capacidade da sensação térmica nos locais afetados.

Por um outro angulo de analise, a lepra é uma doença que afeta a pele, que nos fala de contato, é por ela que fazemos o contato físico com o mundo, é a responsável pelo tato. E um problema desse nível nos fala de uma patologia do 'contato'. Seria pessoas com problemas de contato social, insensibilidade as sensações do toque, dos relacionamentos, da vida, do outro, da natureza, de Deus. 

E a causa? Considerando a transmissão por gotículas de saliva, parte, portanto da boca, de onde procede todo o conteúdo de linguagem, de fala, de palavras. Em especial de um conteúdo sólido que sai da boca do outro e contamina. Seria dizer das representações e constituição que fazemos a partir das palavras, daquilo que ouvimos. Resumo da interpretação do outro, da nomeação e internalização dos conceitos do outro. O leproso é alguém que adoeceu por conta das palavras, perdendo sua capacidade de sentir, de saudavelmente estabelecer contato com o mundo.

Entrando no campo dos exemplos, a rigor, podemos citar a criança que passou toda a infância sendo maltratada, ouvindo que não valia nada, xingado, deturpado, explorado, e abusado verbalmente, construindo uma identidade e representação do outro, dos relacionamentos e da vida, que implicaram em uma perda da capacidade de sentir, uma vez que essa inabilidade em sentir fosse a resposta mais adequada que o organismo encontrou para evitar o sofrimento.

Essa dificuldade no contato, em sentir, que sequestra, retira uma parte do todo especial do viver, que é sentir e administrar este contato com o externo, discernindo a temperatura da vida, seria como deixar de salgar uma refeição, a vida se torna insipida, mas bem, tornou a escolha inconsciente do leproso, para evitar maiores sofrimentos. Melhor não sentir, a correr o risco de sentir novamente a agressividade e dilaceração que alguns contatos impõe. Uma defesa psicológica inteligente se pensarmos na possibilidade da continuidade do sofrimento.

Mas essas defesas marcar e conceituam o leproso, tornando marginal a vida. As implicações para quem na sente é marcada pela desconsideração dos limites, a começar consigo e terminado em não compreender os do outro. Assim se constroem os agressivos, os loucos, que resultam em essência, antissociais, excluídos e marginalizados. Por isso os leprosários, local especifico para pessoas leprosas, a fim de se manterem em conjunto evitando causar a transmissão da doença para os demais.  Um tipo de carcere para evitar a disseminação do vírus.

Misericórdia

E confinados nesse local especifico de longe os leprosos veem que Jesus, a reencarnação do Verbo, a Palavra Viva se aproxima. O Verbo que tem poderes de semânticos, poderes de acionar por ser verbo, poderes de transitar, de chamar um complemento. A Palavra Viva que tem poderes de ressignificar todo esse conteúdo, todo o texto da memoria, da identidade e representação que o leproso construiu ouvindo e sentindo tantas palavras de auto teor de morte, de desestabilidade, de dor.

E de longe, pois não podiam aproximar de ninguém, eles gritam para Jesus ter misericórdia.

Misericórdia no original hebraíco é rahamíms e deriva da palavra réhem, que significa 'a matriz', o útero da mulher. Assim Chouraqui traduziu o conceito de ser misericordioso como a capacidade de matriciar, isto é, a capacidade de ser matriz, a matriz do Universo, no mesmo sentido que uma mãe, com seu útero, é a matriz em todos os sentidos para a criança, desde o ambiente, a alimentação, os cuidados, a fonte para todas as necessidades da criança que ali está presente.

Nesse sentido, quando os lepresos, portadores de transtornos na capacidade de fazer contato, inabilidade em sentir, advindo de uma historia de prováveis árduas e duras palavras, que implicaram numa subjetivação doentia, pedem que a Palavra Viva, os tomem e novamente os remetam ao útero, a matriz da vida, acolhendo e proporcionando o afago, o suprimento, a ressignificação, a identidade, a saúde e a paz.

Assim Jesus os atende, mas disse 'Ide', em um sentido de dar liberdade, de poderem transitar livremente, de serem libertos da marginalidade, do cativeiro do leprosário. Ir ao encontro dos demais, da convivência, do meio social. Era um comando de liberdade da prisão maior, a do convívio, da sociabilidade.

E a medida que estão indo, que estão curtindo a liberdade, são curados da incapacidade de sentir, de bem relacionar, de discernir os limites. Mas apenas um que era leproso conseguiu perceber que estava curado, e retornou para agradecer, e este era estrangeiro.

9 Leprosos

Os 9 leprosos que iam pelo caminho e foram curados, o texto bíblico não acentua que eles perceberam que foram curados, mas apenas um. Fica uma grande interrogação por que não 'viram' que foram curados, e simplesmente seguiram caminho, sem voltar na atitude de reconhecer o dano e o fato da cura. Talvez o texto nos aponte um fator e um ensinamento a partir do conceito de ser estrangeiro e leproso.

1 Leproso

Mas apenas 1 leproso retornou, agora sem lepra, curado, para agradecer. E este era estrangeiro. Talvez resida no fato de ser estrangeiro que o faz retornar e agradecer, pois o estrangeiro é aquele que está distante do sentimento de posse, é aquele que não tem raízes, suas ligações não apresentam fortes laços, ele não tem terra, não tem chão, onde vive é de outrem.

E por não ter pertencência, isto é, o país não é dele, o povo, a língua, a cultura, a gastronomia, a mentalidade, nada é dele, suas raízes estão em outro local, ele é diferente, e vive diariamente tendo que saber que ele não faz parte, e o exercício de compreensão da mentalidade e cultura local que não é a sua. É diariamente a busca de um projeto de pertencer mas sem raízes. É estar mas não estar. É ter que se ajeitar em um mundo que não é próprio. É ser habitante da casa alheia, é ser visita o tempo todo. 

Talvez estivesse ai o seu problema de contato, a sua lepra, a dificuldade de estabelecer relação com o alheio, com um mundo que não era seu. Aqui está indícios da possibilidade de um religioso, que sabe não ser deste mundo, mas tem extremas dificuldades de estabelecer um contato saudável com este mundo, em 'não sejais deste mundo'. Pessoas que não conseguem elaborar o fato de não ser daqui mas terem que estar aqui, e assim tentar criar no mundo do outro o seu próprio mundo, só pode resultar em confusão. 

E o encontro com o Mestre da Vida, tenha curado este sujeito do seu grave problema de duas culturas e suas implicações permitindo a ele transitar bem em não sendo deste mundo, mas presente neste mundo, e assim reconhece que a vida poderá ser leve e fácil a medida que conseguira viver bem o sagrado. Por isto voltar e agradecer, agradecer pela habilidade de uma vida espiritual saudável e equilibrado em contato com um mundo que não é seu.